
Segundo Georges Gurvitch, o culturalismo abstrato de Heinrich Rickert deve ser classificado dentre os falsos problemas da sociologia do século XIX, notadamente a falsa alternativa entre sociologia ou filosofia da história, incluindo as obras de todos os que seguiram a Heinrich Rickert de perto ou de longe, inclusive Max Weber.
A confusão com a filosofia da história é absolutamente inadmissível, haja vista a capacidade da sociologia para alcançar perfeitamente por si só a situação presente da sociedade sem precisar de outra disciplina para isso.
Mais ainda: a sociologia exige o abandono das ilusões do progresso em direção a um ideal, bem como o abandono das ilusões de uma evolução social unilinear e contínua, cultivada pela filosofia da história.
É competência da sociologia descobrir na realidade social as diversas perspectivas possíveis e até antinômicas que são postas para uma sociedade em vias de se fazer.
As ilusões trazidas pela confusão com a filosofia da história se encontram favorecidas pela ocorrência de um erro lógico fundamental, que é segundo Gurvitch a falta de distinção entre os juízos de realidade e os juízos de valor.
Desse erro decorre a confusão, pois em vez de explicar os desejos a partir da realidade social, constrói-se a realidade social em função desses desejos.
►Os juízos de valor são as aspirações, os desejos e as imagens ideais do futuro, e formam um dos patamares da realidade social em seu conjunto.
Desta sorte, o progresso em direção a um ideal só pode intervir na análise sociológica unicamente em vista de integrar esse progresso ideal em um conjunto de fatos sociais que a análise se propõe explicar.
A sociedade está sujeita a flutuações e até aos movimentos cíclicos. O progresso retilíneo em direção a um ideal particular, tomado como um movimento constante, não pode valer mais do que para períodos determinados – em outros períodos a sociedade pode até mover-se em sentido oposto ao ideal, ou orientar-se por um ideal completamente diferente.
Quer dizer, a falta de distinção entre os juízos de realidade e os juízos de valor [1] torna impossível o acesso da análise sociológica a um dado fundamental da vida social que é a variabilidade.
Gurvitch nos lembra que a identificação da sociologia e da filosofia da história afirma a pressuposição monista que é absolutamente irreal, pois não existe uma Sociedade com “S” maiúsculo, mas só há unicamente sociedades múltiplas, em tal sorte que o sociólogo é levado a pôr em relevo em cada sociedade a ocorrência de tendências variadas, e em cada crise o anúncio de diversas soluções possíveis.
O termo realidade social e o termo sociedade cobrem fenômenos muito diferentes, segundo se trate de diferentes épocas históricas, de diferentes civilizações, de diferentes tipos sociais.
Uma visão singular da sociedade e um modo próprio de interpretar sua natureza são manifestações de caráter coletivo que, notadamente, se encontram em cada tipo de sociedade global.
►Ora, o culturalismo abstrato articula uma concepção sem nenhum contato com essas manifestações do real concreto.
Trata-se de uma orientação desdobrada da chamada filosofia crítica da história que se tentou opor à filosofia dogmática ou materialista da história.
Todavia, a metodologia do saber histórico veio a ser discutida sem ter sido posta em relação dialética com a metodologia do conhecimento sociológico, nem ter afirmado o reconhecimento da realidade dos fenômenos do todo social – ou fenômenos sociais totais, no dizer de Gurvitch.
►Daí que, no culturalismo, o objeto e a realidade histórica tiveram que brotar do próprio método histórico. Com tal desiderato, Heinrich Rickert e seus colegas de pesquisa (inclusive Max Weber) utilizaram a noção de cultura.
Ou seja, a noção de cultura veio a ser identificada a alguns fatos e alguns valores arbitrariamente escolhidos, na convicção de que cultura se opõe a natureza.
Para esses culturalistas, a distinção entre natureza e espírito deve ser aplicada positivamente à caracterização das ciências históricas. Por sua vez, estas tratam de objetos que são portadores do espírito objetivo, quer dizer, objetos que possuem um significado e um sentido não perceptível, mas compreensível para todos.
Isto se esclareceria de imediato – supõe-se, no culturalismo – se pensarmos que a história é antes de tudo ciência da cultura humana.
Quer dizer, a vida cultural se apresentaria sempre como um acontecimento significativo e pleno de sentido, enquanto a natureza, por contra, se desenvolveria livre de significado e de sentido, chegando-se inclusive a censurar Dilthey exatamente por não ter desenvolvido a oposição entre natureza e espírito em uma lógica da história.
No esquema do culturalismo abstrato, Gurvitch destaca que (1) – é por meio dessa referência aos valores como método que se constrói a cultura; (2) – para o estudo da cultura assim construída em manifestações ou fatos individualizados, só se poderia aplicar unicamente o método individualizante (repelindo a tentativa de generalizar as situações particulares em tipos sociológicos concretos); (3) – desta maneira, se obteria por resultado, conjuntamente, a realidade histórica e a ciência da história.
Tal é o esquema do culturalismo abstrato em sua tentativa de reduzir toda a história à história da cultura, procedendo por um método sobre outro método.
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Ler mais: Cultura e Consciência Coletiva
[1] Não confundir com a “separação radical do fato e dos valores”, que alguns autores assinalam na base da redução das condutas individuais às idéias de valor, tal como preconiza Max Weber, decorrendo dessa redução a mencionada falta de distinção entre os juízos de realidade e os juízos de valor.
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